De todas as formas de arte, Vera escolheu a mais difícil, a encáustica, que trabalha com cera de abelha levada ao fogo. Não por coincidência, é a arte mais natural. Vera atua em Piracicaba, passou longas temporadas em São Paulo e já teve sua arte exposta em Paris. Mas conta que não gosta de ‘panelas’ e não suporta a superficialidade que, vez ou outra, paira nos vernissages.
Na entrevista, Vera não economiza emoção e conta também seu longo trabalho em parceria com o botânico e professor Walter Accorsi, para quem fornecia ervas para a fitoterapia e garante já ter sentido o ‘agradecimento’ das plantas diante de seu cuidado com a terra. E foi com coragem e amor que ela recebeu no mesmo dia do ano passado duas notícias: a de que seria avó e a de que estava com um tumor bastante agressivo numa das mamas. Venceu a doença e hoje o neto Nicolas alegra seus dias. Coisas de mulher forte.
Tutti Condomínios - O que a arte representa para você?
Vera Pavanelli - A arte é o meu ar. Eu respiro arte. Não consigo me ver sem arte. O meu olhar é diferente do das outras pessoas.
Desde quando sente essa diferença?
Desde quando nasci. Eu não consigo ver nada se não vejo a arte. Em tudo que há no planeta, eu vejo a arte. Porque tudo é manifestado.
A arte é uma salvação?
É a maior religião que existe no planeta. Quando você está triste, escuta uma música. Você se individualiza por meio da arte.
Quando você era criança e sentia essa diferença, se achava estranha, esquisita?
Eu pensava que todo mundo era igual. Eu só achava esquisito ver que, às vezes, as coisas para mim não davam certo. É porque eu enxergava diferente. Mas tinha dentro de casa muito apoio, porque meus pais tocavam.
A sua família era muito ligada à música?
À arte em geral. Meu avô, pai da minha mãe, era maestro. Do lado do meu pai, todos os irmãos tocavam, eram dez. Eu aprendi a tocar com os irmãos do meu pai. Meus primos tocam, só que depois começaram a trabalhar com coisas que davam mais dinheiro. Para minha família, arte não era profissão.
Era hobby, algo que se fazia depois do trabalho...
É, acabava de trabalhar e aí todo mundo começava a tocar. Eu só parei com a música porque ela me amarrava demais.
Em que sentido?
Eu fiz música clássica, e você não pode se tornar independente. Você vira mais um, e eu tinha uma facilidade grande para compor.
Exigia disciplina demais. Você não pode ‘inventar’ ao tocar um Noturno de Chopin...
Exige dedicação total. E quando eu fiz a minha opção de trabalhar com música popular, eu senti a distância dos meus amigos eruditos.
Há preconceito?
Sim, mas eu nunca liguei para isso. Eu ficava tão ligada com meu mundo que nunca liguei para preconceito. Foram muito raros os momentos em que eu parei para pensar no que os outros estavam pensando de mim. Porque a minha cabeça não parava de pensar. Eu estava sempre no mundo das ideias. A hora que eu via, já estava fazendo outra coisa. Por isso que as novidades não judiam de mim: porque eu não me apego! Em dois minutos, desisti de dar aulas de música aqui, fui embora e já encarei uma nova jornada em São Paulo.
Sua atuação na música popular esteve ligada ao violão?
O violão superou tudo. Eu tocava cinco instrumentos, todos de teclado. E o violão me possibilitou ganhar dinheiro, porque eu dava aula. E era gostoso porque eu era jovem, queria comprar coisas para mim, era independente e meu pai não conseguia me segurar.
Você teve quantos alunos?
Aqui tive mais de 100, depois fui para São Paulo e lá é outra moeda. Tinha muitos alunos lá.
Em que momento você sentiu que Piracicaba estava pequena?
Eu nunca me preocupei se Piracicaba era pequena ou grande para mim. Porque eu tinha meu mundo próprio. Eu nunca pensei em ser presidente da Apap (Associação Piracicabana dos Artistas Plásticos) para tirar proveito. Ao contrário. Eu fui lá para resolver os problemas dos associados e algo muito sério, porque não tinha sede. E a minha preocupação era também com os novos talentos. Porque a cidade estava crescendo e tinha muita gente nova fazendo arte, e sem incentivo. Sou idealizadora do Salão Infanto-juvenil, que não existe mais. E fui homenageada na Assembléia Legislativa de São Paulo justamente por incentivo a novos talentos. Esse é um dos prêmios que prezo muito. Se você tem a mente ocupada com a arte, não está preocupada com o lado de fora.
Você tem opiniões muito fortes. Já comprou muita briga?
Eu não compro briga. Eu faço. Eu simplesmente falo: ‘Olha, meu trabalho é esse. Se não quiser aceitar, não aceite’. Eu vou seguindo meu caminho, eu não posso dar uma recuada para agradar. Não tenho essa preocupação!
Mas não se paga um preço por isso?
Paga-se um preço muito alto porque tem dias que você se sente sozinha. Não sabe se está fazendo certo ou não. Mas como em todo tempo estou sozinha, eu já criei uma individualidade.
Sua "panela" é você sozinha?
É, mas isso é muito difícil. Porque tenho muitos amigos que estão neste patamar. Porque a arte proporciona isso.
A arte é solitária?
Ela é solitária. Ela é social enquanto você está preocupado em fazer e mostrar seu trabalho. Agrega quando você exibe. Mas para mim, um vernissage muitas vezes é um sacrifício.
Por quê?
Ninguém está preocupado com a evolução do meu trabalho, se tem 30 anos de pesquisa. Há comentários do tipo: “Nossa, seu cabelo está ótimo!” ou “Ah, esse espaço é lindo, pena que não pode bebida!”
Fulana engordou, botou botox...
Isso. Então, é uma situação que você tem que encarar, mas a maioria dos artistas que está preocupada com a arte pura, não liga para política artística, o que os outros vão falar. Nem com a quantidade de pessoas. Eu sei que muita gente vai para aparecer no jornal, para dizer que é culta. Mas isso é uma coisa geral, não é só aqui.
Ossos do ofício...
Exato. Agora, o que é mais interessante é que quando eu fiz essa escolha artística, que é a encáustica, pensei: "Agora estou perdida!"
Pouca gente faz encáustica. Por quê?
A encáustica foi descoberta na Grécia antiga. Eles descobriram que fervendo a cera e com pigmentos naturais, a cera dava cor. Aí eles começaram a ralar lápis lazuli, pedras. Acabei de descobrir tudo e depois fui usando a intuição. Aí aconteceu de a minha filha Juliana escolher fazer artes plásticas escondida de mim. Ela prestou artes plásticas na Faap (Fundação Armando Álvares Penteado), passou em sétimo lugar e, quando eu vi, ela já estava fazendo. Quando ela começou a cair para o lado da pintura, pensei: o que ela vai fazer? A professora de encáustica era minha amiga e perguntei quando haveria aula de encáustica. Ela disse que não havia seguro para cobrir eventuais acidentes..
É literalmente brincar com fogo?
É. Mas ela resolveu fazer as aulas e defendeu tese. Acabou levando 10 com louvor e por coragem.
Te dá orgulho essa filha, não?
É, porque eu não influenciei. E todos que trabalham com essa técnica têm os seus segredos. Não que eu seja uma mãe coruja, porque não sou de ficar paparicando. Ela fez encáustica, provou que sabe fazer, mas hoje a especialidade dela é gravura.
E a avó é coruja?
Ah, aí tem que ser! Eu me lembro que a primeira vez que eu soube que estava com problema (câncer de mama), soube que minha filha estava grávida. E nós estávamos de malas prontas para Paris.
E o que isso trouxe como lição?
Nós nos unimos. Eu ia lutar pela minha vida, enquanto ela ia lutar pela vida do filho. Eu nunca pensei que eu fosse me digladiar com a morte.
Em que você pensava?
Eu pensava que eu ia ficar mais bonita! Eu nunca imagino que as coisas venham para mim de uma maneira negativa.
Você venceu o câncer?
Venci! Não pense que foi fácil. Não foi fácil, e não está sendo. São cinco anos de tratamento. Mas isso não quer dizer nada. Porque eu posso durar mais que você. A coincidência foi tão grande entre eu estar vivendo meus 40 anos de carreira, ser avó e esse diagnóstico, que foi a oportunidade que Deus me deu de eu enxergar as coisas de forma diferente. Ele me tirou de um lugar para por no outro.
Depois de vencer um câncer, muda a percepção da vida?
Total. O que é supérfluo passa a ser mais supérfluo ainda. Passa a ser nada. Tem gente que se preocupou comigo por coisas como ‘ah, ela vai perder o cabelo!’ Mas eu logo fui falando para o médico que queria duas perucas. Ultrapassei tudo, a minha recuperação foi fantástica e eles me têm como um exemplo.
De tudo que a gente conversou, o que vale a pena na vida?
O amor. No sentido verdadeiro. Não estou falando de paixão. O amor carnal é um embrulho. O que está dentro, o presente, o âmago, é o amor. Primeiro você tem que se amar. Mas a maioria das pessoas não se gosta, não se aceita. O que faz você aceitar o amor próprio é o silêncio. Quando você está trabalhando, concentrado, a energia do amor se faz presente. Aí você não sente cansaço. Eu sou uma pessoa muito feliz porque eu faço um trabalho que faria de graça. Eu ainda produzo, fico até duas horas da manhã e não vejo o tempo passar. Eu sempre trabalhei muito com organização. Então não me preocupo com quem me fecha portas, pois sempre tem quem me abra janelas. São tão vastos os caminhos que abro!
E o que não vale a pena?
A inveja. É o pior sentimento porque a pessoa se destrói por dentro. Em vez de andar para a frente, ela fica estagnada e não cria mais. E nós somos sombra do Criador. Nós temos uma chispa divina de sempre andar para a frente. Aquele que para é porque tem algo incomodando. O invejoso não quer tomar o seu lugar, ele só quer que você o perca. (por Ronaldo Victoria)