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A vida e a morte de minha mãe

Publicado na Revista Tutti Vida & Estilo | 11ª Edição | Dezembro | 2013
Foto: Divulgação


A morte é para mim um dos grandes enigmas humanos. Está no mesmo patamar do avião: como pode existir?

Por muito tempo venho tentando escrever estas palavras. Quero dividir com você as reflexões sobre a morte de minha mãe. Ou melhor, sobre a vida, afinal hoje entendo claramente que morte é vida. Falar de morte já é difícil, imagine falar da morte de sua mãe, de seu pai. Afinal, eles são imortais para a gente, são vivos demais em nossas melhores (e piores) lembranças desde a infância.

A morte de minha mãe foi como sua vida: intensa e rápida. Ela sempre foi uma pessoa à frente de seu tempo, espontânea e divertida... Pense numa pessoa sem filtro, que às vezes até incomoda porque fala tudo o que lhe vem à cabeça, sem qualquer preocupação. Da mesma forma, ela se tornava adorada exatamente por isso. Era muito carinhosa com as pessoas e tinha amigos de todas as idades e classes sociais, cores, tribos. Era engraçado vê-la falando da mesma forma com os figurões dentro de supercarros, ‘das antigas’ como ela falava, até as margaridas que varriam a rua de nossa casa.

Minha mãe não era fácil. Era cheia de histórias, tristezas e traumas. Talvez um deles, e também de seus filhos, foi a morte do marido, aos 27 anos. Peruano formado pela Esalq, meu pai levou um tiro por acidente na esquina da casa no bairro onde tinha sido criado, em Lima.

Minha mãe era cheia de vícios. Viveu os anos 60 da ditadura, os 70 das cores hippies e os 80 da liberação.

Nos anos 90, tinha dois filhos pequenos e uma filha adolescente, e muita história para viver. Viúva e ainda experimentando a vida em toda a sua intensidade, a mulher caçula de oito filhos contou com o apoio de seus pais, meus avós, que colocaram toda a sua energia dos últimos anos em nossa criação.

Minha mãe era talentosa. Sabia escrever poesia, cantar, dançar e desenhar. Foi dela o estímulo para que eu me tornasse publicitário.

Minha mãe cozinhava bem e um de seus maiores prazeres era nos ver comer e ouvir várias vezes que estava gostoso.

Minha mãe era geniosa, era notívaga, adorava uísque e música alta. Nossas canções de ninar eram em alto e bom volume de MPB: Milton, Chico, Zizi, Tim, Gal, Jane e tantos outros.
Minha mãe era eclética. Já cantou no programa Raul Gil, foi backing vocal num show do Tom Jobim, e levou o Cazuza para dançar no The Wall. E ia pras festas dos artistas no Rio, uma dessas histórias que virou clássico para os amigos, entre eles a Samira Kraide.

Minha mãe era temperamental e emotiva. Chorava fácil e fazia chorar fácil. E não deixava ninguém mexer com seus filhos a ponto de fazer verdadeiros escândalos se fosse preciso (ou entrar na sala de aula para falar ao meu amigo que ele estava errado por ter brigado comigo).

Minha mãe não tinha vergonha e não tinha vergonha de nos fazer pagar mico. Ela falava de sexo com a mesma tranquilidade de quem dá uma receita de bolo.

Pois esta pessoa que tinha mil historias para contar, que foi criada numa família enorme e viveu a vida intensamente, recebeu em janeiro de 2010 a pior notícia de sua vida: ela estava com um câncer do tipo mais agressivo e não teria muitos dias de vida. Sua primeira reação foi lamentar-se, nada mais natural. Afinal, nas suas palavras ela poderia ter morrido com um tiro, overdose, desgosto, solidão. Mas, não! Iria morrer com aquela ‘merda’ dentro dela! Hoje até rio ao me lembrar desta reflexão. Rio por achar um pouco de verdade nela.
Minha mãe foi uma verdadeira fênix. Sofreu muitas coisas, criou outras dezenas de problemas para a própria vida, mas sobreviveu. Viu seus filhos se casarem, conheceu alguns netos e esteve os últimos anos de sua vida muito bem.

Naquele janeiro, eu tinha acabado de me casar e chegar das férias e, alguns dias depois, ela foi internada com fortes dores e a suspeita de cálculos na bexiga, problema que sempre a acompanhou desde um grave acidente de moto aos 16 anos.

Depois de alguns dias, aquilo se apresentou como um carcinoma infiltrativo indiferenciado na bexiga, ou seja, praticamente uma sentença de morte.

Quando o resultado chegou, uma das enfermeiras me levou a conhecer o quadro de outros pacientes com o mesmo problema e a impressão foi rápida: estava chegando a hora de minha mãe partir. Mas, como?! Aí a gente se lembra que podemos até ficar abismados, mas morte e avião existem e fazem parte de nossas vidas.

Decidi então que a melhor forma de despedir-me de minha mãe seria vendo-a feliz. Chamamos os amigos e familiares e, a partir daquele momento, o hospital virou uma festa. O dia inteiro tinha gente querendo visitar minha mãe, amigos de todos os lados, familiares e gente querendo levar uma palavra amistosa, um presente ou um beijo que poderia ser o de despedida. Eu acredito em milagres, mas sentia no fundo do coração que ela não queria mais ficar nesse mundão de meu Deus. Afinal, de forma mais que surpreendente, estava tudo bem, como ela sonhou a vida toda.

A certeza de que aquela despedida estava chegando aumentava a cada dia de internação. Os sinais eram constantes. Entre eles, a informação de que ela não faria mais o exame de tomografia, pois o contraste poderia matá-la.

Os dias foram passando e as vontades dela sendo atendidas. Mas ela, justo ela que teve tantas vontades, não pedia quase nada, a não ser algumas poucas coisas para comer. Coca-Cola, melancia em cubos e algumas músicas da Bethânia. Quase tudo foi atendido, menos pintar o cabelo de azul. Mais uma vez, mesmo na cama, ela provocava aquele sentimento de quebrar paradigmas que tanto acompanhou seus filhos e hoje não incomoda mais, pelo contrário, faz a diferença para encontrarmos tantas diferenças e conviver com elas no mundo e nas pessoas. Até pediu um carro pra um amigo, para que, quando saísse de lá, pudesse resolver algumas coisas.

Mas, no fundo, ela sabia que não sairia mais daquele hospital. A ponto de consolar alguns amigos e familiares que choravam por ela. “Eu vou ficar bem”.

Ela realmente não era convencional, nada convencional. Mas tinha sua dose de tradicional, suas reservas, e não admitia falsidade, maldade e caretice. Mas qual é o limite?
Entre tantas histórias em sua vida, ela jamais pensou que sua morte seria uma grade história. Nem eu.

A despedida foi regada a misericórdia. Somente naquele dia ela teve dores mais intensas e perdeu a fala poucos minutos antes da partida. A pressão baixou, ela gemeu fundo e começou a se desligar deste mundo, do seu corpo e de toda sua história. Mas faltava meu irmão, que estava chegando. Minha irmã já tinha voltado para Santos, onde mora.

Quando Pedro chegou, cantamos, lembramos as boas passagens de nossa vida juntos em Piracicaba, Santos e Ilhabela, rezamos, rezamos muito. Não havia tempo para a ida de um padre ao hospital, afinal eram 3h da manhã. E nós dois percebemos que aquele seria o momento da extrema unção, o sacramento da vida eterna e a hora de nossa mãe encontrar o colo do Pai, rever suas origens e prosseguir a caminhada. A oração foi se tornando um transe para nós, que dizíamos “vai com Deus mãe”, “aqui vai ficar tudo bem”. E no “amém” fomos abençoados por uma bela morte para uma bela vida. As luzes apagadas, a janela aberta, um céu limpo e um vento suave vêm à minha memória como uma poesia.

Mas como uma morte pode ser bonita? Ou boa? Pois te conto, leitor, tive a sorte de presenciar uma morte tranquila para uma vida nada tranquila. Foi esta benção que mudou minha vida. Foi esta morte que mudou minha vida.

E, principalmente, colocou minha mãe na vida eterna de forma gloriosa. Seu grande sonho e sua grande fé alcançaram o que todos queremos: viver e morrer em paz. O fim pode ser bonito, independente do começo e do meio. Foi o que ela quis: morrer bem.

E depois dessa experiência tão diferente e única, ficou a certeza de que tudo vem depois do amém! Tudo fica bem depois do amém.

Amém!

Bruno Fernandes Chamochumbi é publicitário, diretor do MBM Escritório de Ideias e da revista Tutti Condomínios.

 

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