Faz 20 anos que Ivani Fava Neves teve uma ideia sensacional, dessas que aparecem de repente e que viram a grande missão de uma vida. Era o tempo em que o sociólogo Betinho contagiava o país com a campanha Brasil Sem Fome. “Eu, como assistente social, pensei o seguinte: pra que apenas cesta básica com alimentos se tem tanta gente precisando de casa? Então, em vez disso, pensamos numa cesta básica com materiais de construção e em facilitar a vida de quem deseja construir a sua casa”, conta.
Se deu certo? A Muccap (Associação Pró-Mutirão da Casa Popular de Piracicaba) acaba de completar 20 anos de atuação intensa e contínua, já contribuiu para a construção de mais de 400 moradias em todas as regiões da cidade.
“Eu, que já andava pelas periferias e via as famílias bem numerosas, muitas bem fortinhas, morando em barracos miseráveis, percebi que o problema crucial não era a alimentação, mas a moradia. Numa sexta-feira, viajando para Lins, convenci minha família de que meu sonho era substituir barracos por casas de alvenaria”, lembra.
Nestas duas décadas, Ivani não parou para realizar o seu sonho. Convenceu o marido, o engenheiro agrônomo Evaristo Marzabal Neves, ex-diretor da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), e os dois filhos, Marcos e Flávia, de que aquele era o único jeito de se sentir realizada. “E precisei do apoio deles, porque nunca tive um escritório. No começo, tudo era feito no quarto do casal, onde o arquivo eram duas grandes gavetas. Depois, com o casamento do meu filho, acabei utilizando o antigo quarto dele como escritório”, explica. Organizada como a maioria das virginianas, Ivani tem em várias pastas os documentos de todas as famílias que passaram pela Muccap.
A procura, conta Ivani, continua sendo grande. Mas todo caso precisa ser estudado. Ela e outros integrantes da Muccap (todos voluntários, como ela faz questão de esclarecer) analisam e determinam quem precisa realmente do benefício. “É preciso que a família já tenha o terreno e deve comprovar que realmente é pobre, e muitas vezes não tem quase nada. Muitas vezes recebemos críticas, mas o que eu noto é que a resposta das famílias quase sempre é muito melhor do que a gente imaginava. Porque a casa nova puxa mesmo para cima”, diz.
Por trabalhar nesse nicho de habitação popular, Ivani faz ressalvas a muitos programas que levam as famílias para lugares diferentes de onde já estão estabelecidas, às vezes durante décadas. “Eles fazem o loteamento, tiram as pessoas do bairro em que moravam e levam para um fim de mundo. Aí a pessoa acaba vendendo.”
Para conseguir levar à frente o trabalho, Ivani conta com o apoio dos ‘mucapianos’, aproximadamente 400 pessoas que fazem doações mensais, em média de R$ 30, e também com as famílias beneficiadas que contribuem com um terço da renda mensal da associação, o que possibilita a construção de quase duas casas por mês. Há também doações significativas de empresas e de eventos beneficentes de vários tipos, como jantares ou bingos.
Nessas duas décadas, a vida de Ivani deu uma grande virada, e ela reconhece que o maior acréscimo foi emocional. “Eu me formei em serviço social, mas vivi sempre à sombra do meu marido, do que não me arrependo. Quando ele foi lecionar em Viçosa (MG), eu dava aulas de piano, em São Paulo, vendia cortinas. Mas, com a vida passando, perdi meus pais em pouco tempo, e resolvi fazer um trato com Deus para preencher a minha vida”, revela.
Ivani já havia feito trabalho social no Jardim Primavera e com um grupo de idosos na Vila Sônia, mas seu desejo de atuação era bem maior. “Eu queria algo mais efetivo. Eu queria mesmo era reformar o mundo. Se eu vejo que alguém não está bem na minha frente, não consigo deixar passar”, explica. “Ao mesmo tempo, eu sou um pouco intransigente. Quem quiser ser voluntário da Muccap tem de fazer alguma coisa para mudar. Não pode ser pela metade”.
Às vezes, ela recebe críticas de gente que insinua que tenha pretensões políticas (o que nega enfaticamente), mas as histórias de superação que acumula nessas duas décadas compensam qualquer dissabor. Como a vivida por Creuza dos Santos, no Jardim Oriente, que acabou mudando o quarteirão todo. “É cultural. Os pobres dão valor ao puxadinho, porque ele acomoda mais a família”, diz. Creuza, lembra Ivani, já havia deixado o barraco três vezes, “duas por água e uma por fogo”. Hoje está com uma casa de alvenaria e a filha mais velha está cursando administração.
Há também a história do rapaz que a encontrou numa fila de banco. Ele veio sorridente lhe contar: “Dona Ivani, eu sou o neto da dona Zefinha, lembra?” Claro que ela nunca se esqueceu daquele barraco que, antes de passar pela reforma, tinha sete crianças dormindo amontoadas no sofá da sala. “Agora vejo aquele moço de camisa branca engomada e descubro que ele é colaborador da Muccap e paga R$ 50. E depois dizem que as pessoas são mal-agradecidas!”
A sensação seria de dever cumprido se ela pensasse em parar, mas ainda pretende continuar na luta por muito tempo. “Sempre valeu a pena. Estou extremamente feliz por tudo que vivi e não quero outra vida. Tudo que consegui foi porque tenho a compulsão de fazer diferença”, explica.
É como ela explica num trecho de um de seus livros, O Bau da Vovó (o outro, Construindo Casas e Reconstruindo Vidas, em parceria com a jornalista Beatriz Vicentini, da editora Atlas, está à venda por R$30), em que fala da chegada da Terceira Idade e das lições adquiridas com o tempo. “A velhice é para ter a consciência do dever cumprido. É para olhar ao redor e colher os frutos da semente plantada. É para não ter medo do amanhã, que chega para todos. A velhice é para ensinar que a vida é feita para viver. É para ensinar que viver não é apenas adquirir, comprar, ter, trabalhar, possuir, querer e poder. Viver é isso, mas é muito mais que isso. Viver é sentir, chorar, compartilhar, repartir, entender, amar e perdoar.” (por Ronaldo Victoria)