Por Ronaldo Victoria
Há exatos 40 anos, o Carnaval de Piracicaba começava a mudar. A classe média entrou com tudo na avenida, tanto que a passista que chamou a atenção e ganhou o público era uma garota de 18 anos, professora de balé: Jussara Sansígolo, na época Jussara Siqueira. Com roupas diferentes, ela fazia uma coreografia ousada, uma mistura de samba com outros ritmos. Os puristas não gostaram muito, mas a arquibancada levantava quando a morena passava. Nesta entrevista, Jussara lembra a sua fase na extinta escola de samba Ekypelanka, quando foi chamada de ‘Gigi de Piracicaba’, referência a uma famosa passista branca da Mangueira, e confessa que a dança é sua vida.
Tutti Condomínios - Você ainda curte Carnaval?
Jussara Sansigolo - Curto, acho superinteressante. Porém, o Carnaval de hoje é muito diferente do de antigamente.
Está meio parado?
Está e, além disso, não tem a mesma arte, nem a dança, o samba, a família, os grupos de amigos.
Resumindo: está faltando tudo?
Sim. E hoje o Carnaval dá muita confusão, muitas pessoas já nem saem mais por causa disso. Então, aquele belo Carnaval em Piracicaba ficou pra trás, lá nos anos 70. Hoje ficou limitado àquele tempo em que as escolas de samba têm que cumprir.
Falta interação entre quem está desfilando e quem está assistindo?
Exatamente. Falta interação e falta aquela coisa de dizer: “Eu estou defendendo a minha escola”. Eu, quando fiz parte da Ekypelanka, a defendi, tive outras propostas, mas sempre fiquei nela.
E faz exatos 40 anos que você estreou na avenida, no Carnaval de 1974...
Tem de falar, né? Nem parece que faz 40 anos!
Como surgiu a ideia de desfilar?
Na época, um tio meu fazia parte da diretoria da Ekypelanka. Ele e o doutor Alcides Aldrovandi me conheciam do balé. Eu já era famosa em palco de teatro. Fazia sapateado com Heloaldo Castello Silva e balé clássico com Lina Rosa, com supervisão da Lina Penteado, da academia de Campinas. Recebi esse convite e falei: “Nossa, nunca sambei na minha vida!” Disse que não ia conseguir, que não tinha jeito para isso. Perguntei: “Posso fazer do meu jeito?” Daí eles concordaram.
E como era o seu jeito?
Meu jeito era dançar conforme a música tocava. Eu criava.
Não era só um samba. Você misturava várias coisas, não?
É, eu misturava. Tanto é que teve uma polêmica num ano em que não recebi um prêmio porque disseram que eu era rumbeira e não passista. Aí o pessoal do (jornal) O Diário ficou muito ofendido e comprou briga com o júri oficial. Aí eles me elegeram a musa do Carnaval de Piracicaba.
Você chegava a descer totalmente, deitava no chão, não é?
Sim. Eu fazia tanto o spacatto quando caía para trás, me apoiava nos joelhos. Eu fazia mil coisas. E naquele tempo as escolas não tinham tempo fixo de desfile. Então, as escolas que iam à frente ficavam enrolando. Quando você ia passar na frente do júri, às vezes já eram duas horas da manhã! Tinha que ter muita resistência. E muito amor mesmo.
Como foi seu primeiro desfile, há 40 anos?
Fiquei apaixonada de cara. Aquela bateria tocando, aquele som de cuíca muito próximo do ouvido, tudo isso me deixava deslumbrada. Eu fazia coisas que nem nos ensaios eu conseguia fazer. Em casa eu punha discos de escolas de samba do Rio, ensaiava para resistência. À noite ia aos ensaios. Mas, quando ouvia o som ao vivo, criava coisas no momento, que nem tinha ensaiado.
E como sua família reagiu à novidade?
Deu a maior força. A minha mãe adora, sempre gostou de dança, e minha avó também. Meu pai era professor e jornalista. Tive apoio total.
E o marido, à época namorado, não teve ciúme?
Nunca, ele sempre me apoiou. Estou casada há 34 anos com o Mário Sansigolo e temos dois filhos, Felipe e Fernanda. Ele sempre desfilava perto de mim, tocava prato na bateria, e também recebeu prêmio no Carnaval. Mas não me segurava não, não impedia nada.
Tinha muita inveja, fofoca?
Sim, e foi o motivo que me fez parar. Um ano fui querer fazer um passo em que descia até o chão e não percebi um caco de vidro que foi colocado. Quando percebi, continuei normalmente, mas chegando ao final do percurso disse: “Não saio mais!” Foi em 1979.
E nunca mais desfilou?
Voltei num carro alegórico, já na Caxangá, que era como uma cria da Ekypelanka. O povo aplaudia e ficava gritando: “Desce! Samba!” E no final deu uma tempestade e o carro quase foi levado pela chuva.
E como você vê hoje o Carnaval com essas rainhas de bateria, essas ‘globelezas’?
É diferente do que fui. Elas todas agem como símbolos sexuais. Tem que ser a mais bonita, a mais sexy, mas ter ritmo, entender de samba, ficou em segundo plano.
E elas divulgam as dietas que fazem, o tanto de silicone que colocaram...
Antes a mulher nascia de um jeito e ficava, ia para a rua assim. Hoje é construída, ela vai colocando tudo o que precisa.
Você não tem isso de colocar botox, né?
Não. Mas entendo e não critico quem coloca. A medicina estética avançou muito. Tenho vaidade, como toda mulher, mas vai do gosto. Eu gosto de envelhecer bem.
Como se envelhece bem?
Eu não quero ter um rosto de uma idade que não tenho. Não quero aparentar ser mais jovem. Mas também não quero parecer mais velha. Eu sou vaidosa para manter o que eu tenho, na raça, dançando, fazendo aula. Envelhecer bem é fazer o que eu faço: vivo do que gosto, tenho uma alimentação saudável.
E nem pensa em voltar a desfilar?
O Carnaval perdeu bastante, principalmente o nosso. O nosso está crescendo, mas quem já viveu o apogeu do Carnaval sabe que falta muito para voltar a ser o que era.
Na época, você foi chamada de ‘Gigi de Piracicaba’, referência a uma passista da Mangueira.
Gigi da Mangueira era da sociedade do Rio e foi a primeira a desfilar. Na época, ela fez uma fama imensa, só se falava dela. De repente, vieram jornalistas do Rio e de São Paulo pra cá e fizeram essa comparação.
Você recebeu convites para sair em escolas de outras cidades?
Recebi de uma grande escola do Rio, a Portela, da X9 de Santos. Eles queriam pagar, mas coincidia com o nosso Carnaval. A minha prioridade era sair na minha cidade.
Apesar do final de sua história com o Carnaval de rua de Piracicaba ter sido traumático, você não guarda mágoas, não?
De jeito nenhum! Eu só parei quando vi que estavam colocando caco de vidro, coisas desse tipo. Eu pensei: “Eu danço. Se acontecer alguma coisa, vai acabar o meu sonho”. Do contrário acho que estaria até hoje.
Sem nunca parar com a dança...
Hoje faço a dança dentro da minha escola, num lugar reservado. A gente dança em teatro, sempre com aquela segurança. O artista que vive disso sabe que tem que ter uma dedicação total.
O que a dança te trouxe?
A vida, toda a minha alegria. Passei a vida dançando. Entrei com três anos e nunca parei. Fiz 58 anos e, todo ano quando começam as aulas é aquela explosão: coisa nova, o que vamos fazer, vamos contratar.
Dançar rejuvenesce?
Pra mim, dançar é o meu tratamento estético. A dança é o meu botox. Nas férias, eu fico alucinada com a falta da dança. Tirei agora uns dias e fui pro Rio e São Paulo. Fui pro Municipal assistir Quebra-Nozes! Está no sangue. Se mil vezes eu nascesse, mil vezes faria a mesma coisa, não mudaria nada.