Piracicaba que cria tanto
Publicado na Revista Tutti Vida & Estilo | ª Edição | Agosto | 2014
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Foto: Silvia Audi
Por Ronaldo Victoria
Iniciativas inovadoras ao longo da história mostram que a criatividade está no DNA dos piracicabanos
É a cidade onde o peixe para, diz a raiz indígena do seu nome. Também é onde passa o rio que lhe dá alma, “aquele que vai jogar água pra fora”, de acordo com a canção sertaneja. Lugar da fala carregada que ninguém daqui sente vergonha, ao contrário, até tem orgulho. Assim como temos do glorioso XV, que continua na elite do futebol paulista. O fato é que Piracicaba, que chegou nesse 1º de agosto aos 247 anos, sempre tem alguma referência, em qualquer canto do país.
Porém, além de um coração orgulhoso por tantas tradições, é bom lembrar que essa cidade teve (e tem) cérebros criativos. Gente que, nascida aqui ou acolhida por essa terra, exercitou sua criatividade, olhou para a frente, lançou a semente da novidade. Gente como os intelectuais que, no início do século passado, mais precisamente em 25 de agosto de 1910, lançaram a Universidade Popular de Piracicaba, pioneira na América Latina. O que pretendiam os fundadores, estudiosos do nível de Brenno Ferraz do Amaral, o professor e escritor Thales Castanho de Andrade, Antonio Pinto e Osório de Souza? Levar para as camadas populares aquilo que era ensinado nos colégios.
A Universidade Popular, que funcionava na esquina das ruas Governador Pedro de Toledo e Prudente de Moraes (onde hoje fica o clube Cristovão Colombo e a sede do Sindicato dos Metalúrgicos), tinha até uma biblioteca aberta ao público. E também apresentava saraus e musicais, com destaque para o Orfeão do maestro Fabiano Lozano. Por falar em Lozano, o músico, mesmo nascido na Espanha, em 1884, foi referência cultural e criativa de Piracicaba, para onde veio aos 13 anos. Lozano foi o criador do Orfeão Piracicabano, o primeiro do Brasil.
Seu objetivo era aproveitar vozes privilegiadas que encontrava pela cidade, e que muitas vezes nem sabiam de seu potencial para a música. A partir daí, Lozano, também fundador da Sociedade de Cultura Artística de Piracicaba, teve o método implantado em todo o Brasil. Ganhou adeptos como o escritor Mário de Andrade. O inquieto criador da Semana de Arte Moderna compareceu a um sarau organizado por Lozano, em 1928, no Teatro Santo Estevão. E assim se referiu ao grupo: “É o primeiro coro artístico do Brasil. O professor Lozano é animador admirável dessa moçada piracicabana. A ele cabe o mérito indelével dos primeiros corais que o Brasil pode criar.”
Salão de Humor
A cidade também viu nascer, em 1974, em plena ditadura militar, um espaço democrático que cutucava os poderosos sem perdão. Com a ousadia no DNA, o Salão Internacional de Humor de Piracicaba começou modesto, numa salinha na rua Governador Pedro de Toledo. Foi uma idéia de jornalistas e intelectuais que se reuniam no Café do Bule da praça José Bonifácio (que também deu origem à Banda do Bule) e escreviam na página Recados do extinto jornal O Diário. Logo eles contaram com a adesão da turma de O Pasquim, que comandava a oposição daquela época. Uma aposta arrojada que deu certo. Hoje, em sua 41ª edição, o Salão serviu de inspiração para outros em todo o Brasil e prossegue com sucesso. Há outros exemplos em Piracicaba de gente que coloca a cabeça para funcionar na hora exata, enxerga além das aparências e consegue ser bem-sucedida.
Penélope Charmosa
A cor símbolo é o rosa-choque e aparece com destaque a figura da Penélope Charmosa, personagem do desenho Corrida Maluca. O nome é bem direto: Moto Táxi De Mulher Para Mulher. É isso mesmo: corridas de moto feitas por mulheres motociclistas e apenas para clientes do sexo feminino. A ideia foi de Silvia Adriana Progetti Neme, a Adriana, que fundou a empresa em 6 de agosto de 2012. “Foi pioneira no Brasil e, depois disso, tivemos mais três empresas, em Minas Gerais e em Goiás”, conta. Já atuando no ramo de entregas, com a NP Express, que divide com o marido Thiago, Adriana lembrou que muitas mulheres ficam constrangidas ao pegar moto-táxi com homem.
´´Não quer dizer que eles tomem liberdades. Algumas não se sentem bem em ficar pegando na cintura do homem. E tem maridos que não gostam muito´´, conta. Assim que lançou
o serviço, sentiu que logo a ideia foi aceita. “A gente não teve muita resistência. Difícil foi encontrar mulheres que assumem a moto” Hoje ela conta com seis funcionárias (Lilian, Priscila, Franciele, Cristiane, Jéssica e Denise) e não tem do que reclamar. Mas prefere encerrar a jornada de trabalho às 19h, por questões de segurança. A novidade garantiu matérias em todos os veículos de comunicação de Piracicaba. E uma publicação no portal G1, ligado à Globo, fez com que Adriana e uma motociclista, Ângela (hoje enfermeira), aparecessem no programa Encontro com Fátima Bernardes. Encontro que quase acaba não acontecendo.
´´Quando o produtor, o Maurício, me ligou, pensei que era trote e desliguei. Ele insistiu e eu disse: ’então, eu quero falar com a Fátima‘, para ver se era verdade. Ela veio ao telefone, mas mesmo assim ainda estava desconfiada. Só me convenci quando vi as passagens no nosso nome em Viracopos e depois um carro da Globo nos esperando no Rio.”
Na hora da gravação, porém, ela conta ter ficado bem à vontade. “A Fátima é um amor, é aquilo que você vê no vídeo. Na hora de almoçar no Projac, eu e a Ângela ficamos numa mesa afastada, mas ela foi nos buscar e nos convidou para ficar ao lado dela”, conta.
Kid Coxinha
Sucesso é resultado de trabalho contínuo e de um projeto de marketing bem feito. Depois disso, não tem erro. É o que ensina Fernando Negri, que já atuou em várias áreas e hoje vende coxinha. Ele é o dono do Kid Coxinha (Kid, aliás, é seu apelido), casa que mantém com o irmão, o arquiteto Fábio, a quem convenceu a deixar a profissão. ´´Pode parecer pretensão, mas quando você acredita, estuda, faz como se deve, não pensa na possibilidade de errar´´, afirma.
O Kid Coxinha é o pioneiro em Piracicaba de uma nova mania: a de vender coxinhas e outros salgadinhos em copos de plástico: R$ 2 o pequeno, R$ 4 o médio e R$ 5 o grande. A casa, que fica na rua Benjamin Constant, foi aberta em fevereiro e conta com movimento grande. ´´Em dias de jogo do Brasil, na Copa, tivemos fila grande, que tomou conta da calçada´´, lembra. Logo vieram outros empreendimentos parecidos, mas Negri garante não temer a concorrência.
´´Eu sempre quis trabalhar com comida e escolhi coxinha em primeiro lugar porque é algo que adoro. E tem o fato de ter um preço acessível e ser apresentado de um jeito diferente, que garante rotatividade no espaço´´, explica. Claro que tudo isso não daria certo se ele não caprichasse na receita, o que faz colocando a mão na massa, ou na máquina. ´´Tem um segredo sim, mas que é relacionado não apenas ao tempero, mas ao nosso jeito de fazer.´´
Negri serve copos apenas com coxinhas, ou misturadas com bolinhas de queijo, quibe, rissoles de calabresa ou bolinho de bacalhau, a opção mais recente. ´´Eu sempre quis ter um negócio próprio, mas esperei a hora certa´´, conta o piracicabano formado em letras, ex-professor de francês e especialista em marketing político, atividade que o fez percorrer vários estados brasileiros e alguns países europeus.
Coworking
´´Vale a pena acreditar que seu empreendimento vai dar certo. Além de ter foco, é sempre bom começar pequeno e sem pretensão, senão o tombo vem rápido e grande´´, ensina a jornalista Giovanna Baccarin, que há exatamente um ano, mais precisamente em 27 de julho, inaugurou o Soul Working, com sede na rua Dona Francisca, na Vila Rezende. O que o local permite que as pessoas cheguem, com seus notebooks, e tenham perfeitas condições de trabalhar, seja num espaço menor, ou então podendo utilizar uma sala de reuniões.
´´Hoje nós temos dois perfis de clientes: free lancers que fazem trabalho em casa e não conseguem estabelecer uma disciplina, ou pessoas que trabalham em empresas que não têm filial aqui´´, conta Giovanna, que mantém o empreendimento ao lado dos sócios Leandro Bocchio, Mariana Gandolfi e Daniela Forti. Ao lado deles, Giovanna visitou empresas semelhantes que já estavam em funcionamento em São Paulo. A primeira brasileira foi inaugurada em 2009 e o conceito surgiu, em 2006, em São Francisco, nos Estados Unidos. Hoje, Piracicaba conta com mais dois escritórios no estilo. ´´Neste primeiro ano fomos com calma e também estamos trabalhando mais forte com pessoas que querem se tornar empreendedoras. Temos de ir aos poucos, pois não adianta ficar falando que Piracicaba não comporta tal coisa. Senão nada avança´´, diz.
Sotaque orgulhoso
Por que piracicabano deveria ter vergonha de seu sotaque carregado, dos erres fortes que soam estranhos diante do chiado carioca global que quer se tornar hegemônico? Não há motivos, acredita o jornalista e escritor Cecílio Elias Netto, que começou a publicar a coluna Arco, Tarco, Verva, em 1987, no jornal semanal A Província. O semanário foi uma aposta arrojada que deu certo e, hoje, o jornalista tem a versão na internet. A coluna começou a destacar o típico linguajar da cidade, que Elias logo definiu como ´sotaque caipiracicabano´. As expressões eram coletadas durante as reuniões de pauta das sextas-feiras, ao lado de um grupo de jornalistas então novatos, que incluía Ângela Furlan (hoje editora do jornal Gazeta de Piracicaba) e Rosemary Bars, que seguiu carreira docente.
´´O jeito de falar de Piracicaba tem especificidades que nenhum outro lugar tem. Veja a expressão ´Mai Nem Não´. Ela une três palavras negativas e o resultado é totalmente positivo.
´Cê vai na festa hoje? Mai nem não!´, responde o outro. E quer dizer: claro que sim, já estou lá´´, lembra Cecílio. Entre tantos verbetes, chama a atenção a misteriosa (para quem não mora aqui) expressão ´´Ô Ô´, que deve ser pronunciada longamente e com jeito de espanto. É perfeita para se falar quando alguém conta uma fofoca. Ou então, como existem na cidade várias expressões para denominar o que hoje se chama de ´barraco´: tropé, tedéu, escarcéu, cupaconferi...
Do jornal, a coluna virou livro com o mesmo nome, nos anos 90, e hoje conta com várias reedições. Também foi tema de várias matérias em todo o Brasil. Acabou se tornando um claro veículo para a auto-estima do piracicabano. Como diz o jornalista: ´´Eu não falo do caipira Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, mas do jeito que nos distingue desde que Prudente de Moraes, nosso primeiro presidente civil, era chamado de Biriba, o presidente caipira´´.
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