Fazemos acontecer

O intolerante mora ao lado

Publicado na Revista Tutti Vida & Estilo | 17ª Edição | Dezembro | 2014

Não são apenas os mal-educados que dão trabalho aos síndicos: os ‘reclamões’, muitas vezes, fazem do viver coletivo um inferno

A sensação é de perseguição. Críticas, recados raivosos, telefonemas, queixas. Intolerância, para resumir tudo. Arrumar uma briga no condomínio mina a energia de qualquer um. ´´Parecia uma coisa sem sentido, de repente você percebe que uma pessoa que mora do seu lado implica com tudo que você faz´´, conta um jornalista de Piracicaba, que prefere não se identificar, já que ele ainda mora no prédio onde a intriga aconteceu.
 
Tudo começou quando sua vizinha de baixo tocou o interfone para reclamar da altura do som. ´´Achei estranho porque não costumo ouvir música em volume alto, mas ela dizia, numa voz chorosa, que tinha sono muito leve e não estava conseguindo dormir direito´´, conta. Por via das dúvidas, ele resolveu usar sempre o fone de ouvido. De nada adiantou. Uma semana depois, as queixas continuaram. ´´Dessa vez ela reclamou que eu cantava! E registrou a queixa, de forma raivosa, no livro de ocorrências da portaria´´, lembra. O jornalista conta que a síndica garantiu que a vizinha exagerou na dose.
 
Geralmente acontece isso. Em caso de intolerância, nem sempre são os incomodados que se retiram, como reza o ditado. Marlene Silva de Carvalho, síndica do Edifício Argel, na Vila Independência, conta um caso parecido. ´´Tive um problema com um vizinho que gostava de som alto, mas de tal forma que as portas do meu apartamento até balançavam a cada vez que ele colocava um CD de rock. Era uma pessoa mal educada, que não aceitava críticas. A situação chegou até o apartamento do andar de baixo.
 
Era um casal que nunca deu trabalho em nada. Mas eles se cansaram da situação estressante e preferiram sair, o que foi uma pena´´, conta. A sorte, garante, é que moradores como o roqueiro exagerado têm sido raros. ´´Hoje eu posso dizer que não tenho muitos problemas nesse sentido. O que mais irrita, e pode ser surpresa, não é mais o som alto, mas sim os saltos altos. Geralmente a pessoa acorda no meio da noite com o barulho do sapato no andar de cima. Eu digo para as moças que não precisam desistir de andar na moda, mas que façam como os japoneses: tirem o sapato assim que entrar em casa´´, diz.
 
Marlene revela que tem bastante tato, usa sempre a diplomacia e não se incomoda em ter de agir em casos que parecem tão pequenos. ´´Não adianta o síndico dizer que poderia usar esse tempo para resolver questões mais importantes. São ossos do ofício. Quem lida com gente tem de estar preparado para isso´´, garante. A síndica lembra que a administradora do condomínio, a Brancalion, tem uma cartilha que deixa bem clara a política para esses casos de relação entre vizinhos. Todos recebem assim que se mudam. ´´É como um manual de instruções de eletrodomésticos. O problema é que a maioria das pessoas não lê e alega que não sabia de nada.´´
 
NO LIMITE
Síndico do Edifício Portal do Engenho, na Nova Piracicaba, Paulo Roberto Ruffini reconhece que a situação atual entre os condôminos está tranquila, mas sente que estamos num momento complicado para a relação entre vizinhos. ´´De maneira geral, nós estamos nessa condição de estresse. Por qualquer coisa as pessoas já levantam a voz. Nós, os síndicos,
temos de ter paciência, e restabelecer a tolerância como se fosse numa família. O que, no fundo, temos de ser´´, destaca.
 
Quanto às regras de convívio, Ruffini destaca um velho ensinamento. “Todo mundo tem de entender que o seu direito termina onde começa o do outro.´´ E hoje comemora a queda
de problemas entre moradores. ´´O fundamental está sendo feito pela administradora, que é definir claramente as regras e cuidar para que elas sejam cumpridas´´, afirma.
 
Para o síndico, tudo melhora se a pessoa que decide morar em condomínio pense antes que terá de mudar alguns hábitos. ´´É fundamental que cada um pense numa forma mais coletiva. O nome condomínio já diz disso. É questão de consciência. É preciso saber morar e isso tem a ver com respeito.´´
 
A era do individualismo
A intolerância em condomínios é reflexo do estresse que vivemos atualmente em nossa sociedade. É essa a situação diagnosticada por Pedro Faleiros, coordenador do curso de psicologia da Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba). ´´O que acontece nos condomínios é fruto de uma sociedade intolerante. Há intolerância em outros lugares também: na rua, na escola, no trabalho. O que tem ocorrido nos condomínios é apenas uma amostra do que ocorre na sociedade´´, afirma.
 
Na visão dele, a intolerância está latente em cada um. E pode ser perigosamente detonada quando a pessoa sente que está perdendo algum direito, mas não sabe trabalhar a questão nem a maneira correta de agir. ´´Há uma sensação de desigualdade. Por outro lado, há um sentimento de impunidade. Queremos que nossos direitos sejam preservados, pois nos sentimos ameaçados. Mas, quando buscamos defender o que achamos que é certo, não sabemos o que fazer nem temos a clareza de que estamos transgredindo o direito do outro.
Ou seja, vivemos em uma sociedade em que queremos garantir o que é nosso, mas sem levar em consideração o outro. Então, a intolerância mostra a incoerência e a falta de conhecimento do mundo em que vivemos´´, explica o psicólogo. Todo esse processo pode ser defi nido por uma palavra: individualismo. “No individualismo eu vejo somente minhas ações e escolhas, somente os meus direitos e a possibilidade de não perdê-los de forma alguma. Como já me tiraram algo ou já me coibiram de algum direito, então agora eu os quero de volta a qualquer preço´´, destaca Faleiros.
 
Para o professor, a administradora deve agir de forma bem defi nida para diminuir esses casos. Estabelecer regras claras é fundamental. Primeiro, normas e regras têm de ser transparentes. Segundo, a participação em processos decisórios precisa envolver o maior número de pessoas. Por fi m, agir de forma sempre igual em qualquer caso.
 
Para o psicólogo, no convívio de um prédio, não existe diferença entre o morador relapso, que ignora as regras, e aquele que é ‘reclamão’ full time e não tolera nada. ´´Os dois são ruins,
pois ambos agem com base em padrões egoístas e encontrarão difi culdades no convívio coletivo´´,define. Por isso, morar em condomínio exige antes uma refl exão. ´´A pessoa tem que
pensar que, mesmo que tenha adquirido um imóvel, o convívio, as decisões, boa parte de sua vida social envolverão outras pessoas. E que por mais caro que tenha pagado, há um espaço que não será só dela. Além disso, deve estar preparada para o fato de que não apenas a vontade dela vale. Outro aspecto importante é educar as pessoas a saberem quais são os meios legais e os caminhos adequados para se fazer reclamações´´, conclui.

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