Tão diferentes, tão iguais
Publicado na Revista Tutti Vida & Estilo | 19ª Edição | Abril | 2015
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Foto: Guilherme Miranda
Por Ronaldo Victoria
Dizem que as mães são todas iguais, mas a verdade é que as diferenças culturais pesam, e muito, na forma de se exercer a maternidade
As mães brasileiras, dizem, são todas iguais, a única coisa que muda é o endereço. E trariam no DNA fatos como gostar de uma chantagenzinha emocional, fazer-se de coitadas e superproteger o filho, tenha ele quatro ou 40 anos. Então acompanhe alguns exemplos:
1 A mãe foi acompanhar o filho de 18 anos que havia acabado de entrar na faculdade, em outra cidade. O que fez ela? Arrumou toda a mudança, alugou o apartamento para o ´filhote´, cuidou de tudo? Não, deixou o rapaz na rodoviária com uma mala e algum dinheiro. Ele se virou sozinho.
2 Mesmo que as duas filhas não tenham dado muito trabalho, se a mãe é chamada na escola por causa delas, não faz escândalo depois nem deixa as meninas de castigo. Como reage? Apenas conversa.
3 Tem coisas que essa mãe não deixa passar. Tem de haver ordem, bagunça em casa precisa ser evitada. Tudo bem se os filhos se esquecem de dar ´bom dia´ para alguém, especialmente os mais velhos? Nem pensar!
As três mães moram no Brasil, mas, claro, vieram de outros países, outras culturas. Mesmo há várias décadas vivendo aqui, admitem que fazem um mix de Brasil e dos países de origem quando se trata de criar os filhos. A primeira é a professora universitária francesa Anne Hélène Fostier, radicada há 23 anos em Piracicaba. A segunda é a médica tcheca Ludmila Weiss Aloisi, que está no Brasil há mais de 60 anos. E a terceira é a designer de interiores peruana Cláudia Maria Quintana Piedade, que também se mudou para o Brasil ainda criança.
MATERNIDADE À FRANCESA
Anne Hélène conta que achou engraçada a reação de suas amigas brasileiras quando ela contou que deixou o filho, Gael Moraes, 22, que faz relações internacionais na Unesp de Marília, sozinho na rodoviária com uma mala na mão. ´´Elas falavam para mim: ´Coitado! Não acredito que você fez isso com seu filho!’´´, lembra, comentando a diferença de visões sobre a maternidade.
Aliás, a professora conta que reproduziu muitas coisas aprendidas com a mãe e se define como ´mãe francesa´, apesar dos 23 anos de Brasil. Tanto que quase só conversa com Gael em francês. ´´De uma maneira geral, as mães francesas deixam os filhos mais soltos. Por outro lado, cobram mais. Minha sensação é que dá responsabilidade mais cedo. Na Europa é diferente daqui. Horário de comer é horário de comer, e a hora da mesa é sagrada. E criança tem de estar na cama às oito e meia, nove da noite no máximo. É melhor, é mais saudável´´, explica Anne, que também não perdeu o sotaque.
Para ela, a rigidez maior nos primeiros anos tem uma razão não apenas pedagógica, mas estrutural. ´´Faz muito mais sentido você ser mais dura no começo. Aí você cria uma estrutura forte, um alicerce sólido. O que permite que seu filho voe para o mundo com mais segurança.´´ Ela sentiu isso desde que se apaixonou, quando era estudante, pelo engenheiro brasileiro
Jorge Moraes, que fazia doutorado na mesma universidade. Terminado o período de estudos dele, ela se mudou para cá, onde garante não ter sentido choque cultural. ´´São culturas latinas e têm muitos pontos em comum. Além disso, minha família já teve uma experiência brasileira´´, lembra. O avô de Anne veio para o Rio de Janeiro, em 1935, para ser instrutor aéreo do Exército Brasileiro. Chegou com cinco filhos e teve aqui a caçula em terras cariocas. Anne tem tios que falam português até hoje. ´´Não sei se pelo fato de minha mãe ter simpatia pelo Brasil, mas o fato é que ela não fez carnaval nenhum quando eu disse que viria pra cá´´, revela.
Anne lembra que a mãe sempre usava uma frase que ela repete. ´´Se meu filho está feliz, eu fico feliz também´´. ´´Já faz quatro anos que ele saiu de casa. E saiu antes, com 16 anos, para fazer intercâmbio na Nova Zelândia. Sei que pela profissão que escolheu, ele vai para o mundo. Mas nessas horas eu me lembro da frase: se ele estiver feliz, eu vou estar também.´´
Gael conta que escolheu o curso de relações internacionais por vários motivos, e um dos mais fortes é a educação que recebeu. ´´Só o fato de eu ter nascido nesse multiculturalismo já é uma coisa marcante. Sou bilíngue desde pequeno e minha mãe só falava em francês comigo. Soube desde cedo que pelo resto da vida queria ter contato com outros países, outras culturas. Terminada a faculdade, vou para o mundo´´, avisa.
O estudante conta que só teve noção da diferença de educação quando foi visitar a família francesa. ´´Lá a coisa é bem mais rígida, a criança tem de dar satisfação de tudo o que faz. Criança não senta em mesa de adulto, é separado. Achava chata aquela coisa toda regrada, mas depois entendi. A mãe francesa é rígida. A brasileira é superprotetora. A mãe tende a ser ´coruja´ no Brasil, especialmente dos filhos homens´´, afirma.
Porém, Gael acha que Anne já se ´abrasileirou´ um pouco. ´´Ela foi ficando mais liberal. Mas ela mantém como características a grande sinceridade, o jeito de falar sem papas na língua, a confiança e a liberdade que ela sempre me deu´´, conclui.
RAÍZES PODEROSAS
Hoje Ludmila Weiss Aloisi acredita que é uma mãe ´meio tcheca meio brasileira´. Afinal, está no país há seis décadas, embora as raízes da República Tcheca ainda estejam
muito presentes. ´´Fiquei pouco tempo lá, mas tive a influência da minha mãe, Anastasia, que está com 92 anos. Ela me passou toda a educação, que é bem diferente´´, conta.
A diferença principal é o que ela chama de intimidade familiar. Os tchecos nunca chamaram pai e mãe de senhor e senhora, mas de você. ´´Senhor e senhora são os conhecidos. Entre pais e filhos não existe isso. Temos a intimidade de poder contar tudo, ter essa confiança. Não sei se a educação é rígida, mas uma coisa eu sei: o certo é certo, o errado é errado´´.
Ludmila chegou aqui com apenas três anos. A família era refugiada do comunismo. O pai, que lutou na Segunda Guerra Mundial, não aceitou o fato de a União Soviética anexar os países do Leste Europeu a partir de 1949, criando o que se chamava de Cortina de Ferro. ´´Fomos primeiro para a Alemanha. Meus pais não queriam mais ficar na Europa, porque havia até o receio da Terceira Guerra. Os únicos países que estavam aceitando imigração na época eram o Brasil e a Austrália. Então, viemos para cá´´, lembra.
A médica admite que o fato de a família ter fugido do comunismo trouxe influências marcantes. ´´A formação política para mim é uma coisa muito forte, eu sou engajada. Não tem como fugir. Tenho contato com parentes, com gente que sofreu a questão política lá. Depois vim saber que eles sofreram represálias porque a gente fugiu. Mas hoje o país é uma democracia.´´
Outra diferença é que o pai, Adolfo, já falecido, participava mais da educação. ´´Ele cozinhava, arrumava a casa, cuidava de mim. Era diferente dos pais brasileiros da época. Nunca teve machismo, aquela coisa de eu sou o machão, o homem da casa´´, lembra. De toda essa mistura, Ludmila define como foi seu estilo como mãe. ´´Dei uma educação mais liberal, com responsabilidade. Eu falava para elas: ´Olha, o mundo é assim, você que sabe. Quer fazer? Arque com as consequências’.
Para a filha, Carolina Weiss Aloisi Laicine, que também seguiu a medicina, esse jeito de Ludmila fez com que as amigas, na infância, tivessem até uma certa inveja. ´´Elas diziam: ´Ah, a mãe da Carol que é legal´. Por isso, elas gostavam de vir em casa. Na época, no Brasil, os pais educavam mais pelo medo. E em casa não era assim´´, conta.
Outro valor essencial que recebeu foi a importância do estudo. ´´Como meu avô passou muito perrengue na vida, minha mãe estudou e lutou. Eu e minha irmã, Milena, nunca recebemos as coisas de mão beijada. Nós nos demos bem na vida porque aprendemos a batalhar. Faltar à escola era um negócio inadmissível. A nossa parte era essa´´, revela.
MISTURA LATINA
Cláudia chegou ao Brasil com apenas oito anos, junto com a família. O pai deixou uma fazenda perto de Lima, capital do Peru. ´´A educação peruana é muito tradicionalista, conservadora. Minha mãe era muito rígida, talvez porque minha avó fosse filha de ingleses. Ela criou a mim e a meus irmãos assim, na rédea curta. E eu tentei seguir um pouco isso com meus filhos, Lígia e Daniel´´, afirma.
Mas, logo ela percebeu que precisava abrir muita exceção. Porque o tempo mudou e ela se casou com um brasileiro despojado, o empresário João Piedade. ´´Se minha filha fazia manha pra comer, eu deixava comer na sala. Coisa que minha mãe jamais admitiria. Meu avô comia de gravata. Aí percebi que tinha de mudar e ter um consenso na educação dos filhos.´´
Hoje ela se define como mais brasileira do que peruana no modo de ver a vida. ´´O peruano é conservador em muitas questões. Ele não admite que um homem não se levante
quando chegue uma mulher. Ou não se dê bom dia. São coisas que acontecem aqui no Brasil e que ainda impressionam a minha mãe´´, conta. Outra coisa, até surpreendente, é que ela define o povo peruano como mais alegre que o brasileiro. ´´O brasileiro passa para o mundo essa imagem de descontraído por conta do Carnaval. Mas o peruano é muito
mais expressivo, mais caloroso.´´
Sobre a parte chata da mãe peruana, Cláudia revela que cobra bastante em relação à ordem. ´´Eu não gosto de nada fora de ordem. Também não abro mão da educação. Eu fui criada assim e exijo respeito com os mais velhos´´, relata.
Cláudia conta que foi mais rígida com a filha, e nesse ponto se diz mais brasileira. Mas Lígia, que é arquiteta, entende. ´´Ela foi se abrasileirando ao longo do tempo. É até melhor que uma mãe brasileira. Os princípios dela, a criação que ela me deu, hoje são até raras´´, conta. Lígia acredita que vai reproduzir muita coisa quando for mãe. ´´Nisso, com certeza. Ela tem pequenos defeitos. Às vezes, dá uma exagerada, mas entendo que foi criada assim. Ela tem ainda algumas ´frescurinhas´, mas são coisas pequenas.´´
O filho Daniel, formado em administração de empresas, é mais crítico. ´´Às vezes, sinto que ela quer trazer os costumes do Peru para cá. Ela quer controlar um pouco a gente, para almoçar tem de estar todo mundo junto. Mas se eu cheguei de madrugada, não quero almoçar naquela hora´´, diz.
Porém, ele diz que isso é coisa do passado. A mãe não deu palpite na sua escolha da profissão. Ele morou sete anos fora, em São Paulo, e voltou a viver com os pais há dois meses. Conta que estranhou a nova realidade, mas logo se muda para sua casa, que está quase pronta. Cláudia aproveita para dizer que mudou também em relação a isso. ´´Encaro isso como algo natural, ele já é um homem, precisa ter sua casa, seu canto. Coisa que mãe peruana não aceita jamais. Lá, filho só sai de casa casado.´´
CHOQUE CULTURAL
O psicólogo Pedro Gobett lembra que a maternidade já representa um desafio enorme para a mulher. ´´Quando ela tem um filho, precisa aprender a exercer esse papel dentro do contexto cultural no qual foi criada, e vai ter de ser educada para viver esse papel ao mesmo tempo em que procura um novo jeito de ser mulher´´, diz.
A saída do local onde vivia para um novo país, às vezes com cultura e costumes muito diferentes, acrescenta uma dificuldade a essa tarefa. ´´Ela vai ter de sofrer todo o impacto advindo de uma quebra desse contexto cultural. É um trabalho dobrado, já que ela precisa administrar o afeto e a formação de uma criança dentro dessa mudança´´.
Para Gobett, a noção de maternidade e de família vem mudando nas duas últimas décadas, com a globalização, que trouxe uniformização de costumes e perda de referências. ´´Nós tínhamos até os anos 1990, e creio que o marco é a chegada da internet, um mundo em que se sabia claramente o que era certo e o que era errado. Hoje tudo parece ter se embaralhado e os pais parecem perdidos.´´
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