Se fosse vivo, o contabilista Eduardo Fernandes Filho faria 100 anos no próximo dia 1º. de agosto, mesma data em que Piracicaba completa 246 anos de fundação. O homem carismático e empreendedor que construiu boa parte de sua história de vida e sua carreira no bairro Monte Alegre será homenageado por familiares e amigos no dia 3 de agosto, com missa na Capela de São Pedro, às 10h30, e almoço musical na Casa do Marquês.
Fernandes começou, nos anos 30, como escriturário na Usina Monte Alegre, onde exerceu ainda os cargos de chefe de escritório e gerente. Porém, quando se trata de analisar sua história, o que mais chama a atenção é o fato de ele ter sido múltiplo. Quem analisa o currículo de Fernandes fica surpreso de imaginar como coube tanta atuação numa vida intensamente vivida. Ou como ele conseguia dar conta de tantos compromissos profissionais. “Ele trabalhou muito. Quando penso no que ele fez em vida, vejo que a maior lição que deixou foi esse dinamismo”, afirma Maria Dirce Fernandes Lacorte, a mais velha dos oito filhos que Eduardo teve com Maria Benedicta Silveira Fernandes, a dona Mariquinha.
O neto Bruno Fernandes Chamochumbi, publicitário, diretor do MBM Escritório de Ideias e da Revista Monte Alegre, diz que o avô é sua grande inspiração profissional e que ele era a popularidade em pessoa. “Quando ele me levava a pé até o Mercado Municipal, a gente ia pela rua Governador e a caminhada durava horas, porque ele parava ou era parado para conversar com todo mundo”, conta.
Este homem popular, alegre, amante do futebol e com uma voz perfeita para cantar valsas românticas e tangos derramados, que dava broncas duras, mas sabia pedir desculpas, será em breve nome de rua, no distrito industrial Uninorte. A propositura, de autoria do vereador Capitão Gomes, já está tramitando na Câmara Municipal. Há 30 anos, a mesma Casa de Leis outorgou a ele o título de Cidadão Piracicabano. Fernandes nasceu na Argentina, por mero acaso, durante uma viagem de trabalho dos pais. Mas voltou para cá antes de um ano de idade, onde ficou até morrer, em 1996.
Nos anos 70, Fernandes assumiu como gerente geral da nova Usina Monte Alegre, quando foi comprada pelo grupo Ometto. Foi eleito diretor secretário do novo grupo, em 1977. Foi também administrador das usinas Da Barra, Da Serra e Vassununga.
Exerceu cargos administrativos na Mausa, Agave Industrial, Mepir (Metalúrgica Piracicabana), além de ter sido fundador da Auto Piracicaba, da Mercantil Piracicaba (primeira loja a vender televisores na cidade) e assessor administrativo das usinas Costa Pinto e Santa Bárbara.
Mesmo com tanta atividade profissional, ainda encontrou tempo para se dedicar à Escola de Música de Piracicaba, à Acipi (Associação Comercial e Industrial de Piracicaba, da qual foi presidente do Conselho Consultivo), ao Conselho Deliberativo do E.C. XV de Novembro, mesa diretora da Santa Casa de Misericórdia e ao Lions Clube Centro.
Pedro Mizutani, vice-presidente da Raizen, guarda boas lembranças do seu início de carreira, na Usina Monte Alegre, e teve em Fernandes uma espécie de mestre. “Logo no início da minha carreira, o ‘seu’ Eduardo me ensinou muito, principalmente como conciliar, ser produtivo e ter sempre a paciência de ensinar os outros. Ele era uma pessoa muito alegre, além de ser muito trabalhador. Hoje faz 30 anos que estou na organização e gostaria de me espelhar no ‘seu’ Eduardo quando encerrar minha carreira: com muita energia e o espírito jovem, apesar da idade cronológica”
Maria de Fátima Rodrigues também revela que teve a sorte de conhecer e ter Fernandes como chefe na Usina Monte Alegre, onde começou a trabalhar aos 17 anos. Ela foi contratada como recepcionista e, aos 21 anos, era secretária de Fernandes, que estava com 63 anos. “Naquela época, não percebi a importância de trabalhar para um homem como ele. Só hoje vejo o quanto isso foi importante, pois esse privilégio não era para qualquer um”, conta. O lado leonino da personalidade do chefe também ajudou, avalia Fátima. “Era do signo de Leão, e ‘rugia’ mesmo quando ficava bravo. Era irônico quando queria dar uma bronca, mas divertido para se desculpar. Ele não tinha muita afinidade com pessoas tímidas, pelo menos para secretariá-lo. Aliás, uma secretária tímida não conseguiria trabalhar com ele, pelo menos não por muito tempo.”
A comerciante Sueli Abdalla também teve Eduardo Fernandes Filho como seu primeiro chefe. Ela começou aos 18 anos na Usina Monte Alegre, recém-formada em serviço social, e Fernandes era o gerente. “Eu controlava o estoque, mas logo depois, quando a empresa foi comprada pela Monte Belo, ele me arrumou uma vaga no ambulatório médico”, conta. Depois, Sueli exerceu a mesma função na Usina Santa Bárbara, encaminhada pelo ex-chefe. “Para mim, ele foi como um pai, uma pessoa boníssima que sempre me apoiou. Ele tinha o dom de saber incentivar, mas ao mesmo tempo sabia a hora certa de apontar seus defeitos com toda a classe e sem nunca magoar. Um cavalheiro”, define.
Nas horas vagas, Fernandes ainda tinha disposição para cantar tangos e músicas brasileiras. Chegou a se apresentar em programas da Rádio Difusora, antiga PRD-6. Maria Apparecida Mahle, fundadora da Escola de Música de Piracicaba com o marido, o maestro Ernst Mahle, em 1953, conheceu bem o lado artístico de Fernandes. “Ele foi um colaborador importante da nossa escola e fundamental para os primeiros anos, graças à sua visão comercial e seu espírito administrativo”, conta. “O Eduardo era uma pessoa muito alegre, que tinha muitas ideias, e foi um ótimo administrador, tomando conta de toda a contabilidade. E ele realmente defendia a necessidade do ensino musical, tanto que colocou todos os filhos na escola. O Eduardinho (Eduardo José Fernandes) poderia, inclusive, ter seguido carreira. Era um ótimo violinista”, lembra Cidinha.
Para a filha mais velha, Maria Dirce, fica a lembrança de um pai alegre, mas que sabia ser duro nas horas certas. “Papai amava a música. Lembro dele cantando junto com minha mãe e também fazendo serenatas para ela. E ele transmitiu esse gosto para todos nós”, confirma Dirce. “Chamava atenção quando era necessário, mas nunca ergueu a mão para filho nenhum”, ressalta.
Além de Dirce e Eduardo José, o casal também teve Maria Helena, Maria Aparecida, Maria Regina, Maria Luiza, Maria Isabel e Fernando José. “As mulheres têm Maria no nome e os homens José. Mas era mais reflexo de uma religiosidade da minha mãe”, explica.
Fernando José, o caçula, que hoje mora no Rio de Janeiro e trabalha com design gráfico, também pensa em música quando fala do pai. Tanto que foi dele a ideia de colocar a frase “os sonhos mais lindos sonhei!” (da valsa Fascinação) no convite para a celebração do centenário de Fernandes. “A música me marcou muito, não me esqueço dele cantando. Eu convivi bastante e, como sou filho temporão, quando fomos morar em São Paulo, perto do Pacaembu, ele me apresentou o futebol. Virei sãopaulino para toda a vida”, afirma.
Para Fernando, o pai deixou também outras duas heranças: “A primeira é a do empreendedorismo, embora eu não goste da palavra. Mas é o lado de criar oportunidades, não ficar parado. E depois o apego pela arte, que também uniu a família”, explica.
O neto Bruno, filho de Maria Isabel, reconhece no avô uma de suas maiores influências. “Ele era alegre, gostava de futebol e de música, e criava oportunidades. Ao ver o currículo dele, a gente se pergunta como ele teve tempo de fazer tudo aquilo”.
Cinira Maian Retamero, nascida e criada no Monte Alegre há mais de 70 anos, não se esquece da convivência com Fernandes. “Nos meus devaneios de mocinha, eu olhava o jeito como o ‘seu’ Eduardo tratava a dona Mariquinha e queria isso para mim um dia. Por causa deles, eu passei a ter na minha mente que casamento é uma coisa linda”, afirma.
Tudo por causa do carinho recíproco, das músicas que eram cantadas na casa. Ainda garota, com nove anos (naquele tempo era permitido), Cinira foi cuidar de Dirce, que tinha pouco mais de um ano. Ficou uma amizade sólida. “Depois de alguns anos eu o reencontrei no tempo do Monte Alegre. Eu fiquei viúva e morava numa casinha da usina, mas ele garantiu que eu continuasse lá. Devo muito a ele.”
Eduardo Fernandes Filho recebeu o título de Cidadão Piracicabano, em 1983, por meio de um projeto apresentado no dia 16 de abril daquele ano pelo então vereador José Coral. Sim, porque ele era argentino, nascido em Buenos Aires, em agosto de 1913. Os pais, Eduardo e Adelina, se casaram na Catedral de Santo Antônio, em Piracicaba, e logo em seguida foram morar na Argentina durante três anos. Daí o nascimento dele naquele país, de onde veio aos 11 meses de idade diretamente para Piracicaba, onde foi batizado. Mas os amigos dizem que o piracicabano também incorporou os tangos na alma.
Na justificativa, Coral comentou a ligação de Fernandes com a cidade. “Sempre participou ativamente da vida piracicabana, quer dos empreendimentos particulares, quer sociais. Sua presença marcante sempre impulsionou e influenciou beneficamente a sociedade piracicabana. Brasileiro naturalizado, sempre foi piracicabano de coração. Aqui passou toda a sua vida, desde a infância. Seu currículo é mais do que suficiente para comprovar a real necessidade e justiça de lhe ser conferido por esta Casa de Leis o título de Cidadão Piracicabano”. O título foi entregue durante solenidade realizada no dia 1º de agosto de 1983, há exatos 30 anos. (por Ronaldo Victoria)